(Dra. Karen Câmara)
Volta e meia me perguntam qual é minha opinião sobre o programa “Mais Médicos” que o governo brasileiro está tentando implantar no país.
Temos que examinar a situação de forma mais abrangente e há muitos aspectos diferentes a considerar.
Não há falta de médicos no Brasil. O que existe é uma má distribuição desses profissionais, que estão concentrados em regiões que têm mais recursos. O programa “Mais Médicos” foi criado para tentar resolver a falta de médicos em lugares onde não há médicos suficientes. São lugares que não foram ocupados naturalmente pelos médicos brasileiros. A primeira pergunta a ser feita é: por que os próprios médicos brasileiros não estão ocupando esses postos? Várias respostas me ocorrem: são locais remotos, pobres, sem recursos mínimos para a prática da medicina, com poucos atrativos para o estabelecimento do profissional e de sua família; são locais perigosos, como bairros onde a violência grassa; lugares onde não há infraestrutura básica, não há saneamento, água potável, acesso à educação; não há como recorrer a um colega especialista ou a um serviço com mais recursos quando necessário. Poderíamos discorrer longamente sobre essas razões mas esse não é nosso objetivo.
Vamos em frente. Eu diria que isso é apenas um detalhe de um problema muito maior. Comparo a Saúde no Brasil a uma pessoa muito doente. Posso até imaginá-la como um paciente de meia idade que entra em meu consultório e cuja queixa principal é a dificuldade de andar porque está com feridas nos pés. Colho as primeiras informações sobre o aparecimento e a evolução do problema que o aflige. No exame físico, peço para que ele retire os sapatos. Vejo que o calçado não é adequado. Ao examinar seus pés, tudo indica que se trata de uma micose complicada por uma infecção secundária. Os pés estão mal cuidados, sem asseio, as unhas compridas e sujas, há feridas abertas, com pus, algumas regiões estão maceradas, o aspecto é feio, o cheiro é desagradável. Aquilo não surgiu da noite para o dia. Há semanas, ou mesmo meses, que está evoluindo. Pergunto-me por que não tratou antes, quando ainda não estava complicado? Olho para o paciente: é um desleixo total, está muito acima do peso, tem uma barriga grande e proeminente, é relapso em sua higiene pessoal, tem aspecto pálido e doentio. Fico sabendo, pela anamnese, que é diabético tipo 2, hipertenso e tem colesterol alto há vários anos. Não se cuida. Às vezes, quando a situação aperta, vai ao médico mas não segue sua orientação; toma os medicamentos de forma incorreta e irregular, não se alimenta adequadamente, consome muito sal, muito açúcar, muita gordura animal. Não pratica nenhuma atividade física, não faz o menor esforço para emagrecer. O diabetes dele não está compensado, a hipertensão não está controlada. Diante das circunstâncias, sei que esse pé é um problema difícil de ser tratado. Não é apenas um pé com micose. É a conjunção de todos esses fatores que resultaram nesse pé. Se esse pé não for tratado, a coisa pode complicar tanto que talvez precise até ser amputado. Mas, para que possa ser tratado com sucesso, não só a micose e a infecção locais precisam ser debeladas, como todas as outras condições devem ser abordadas e melhoradas. Não adianta apenas prescrever antibiótico e creme local para micose. O diabetes e a hipertensão têm que estar sob controle. Por sua vez, essas doenças só estarão controladas se houver uso correto de medicamentos e mudanças no estilo de vida, como perda de peso, atividade física, alimentação adequada.
Sabe-se que as tão apregoadas mudanças no estilo de vida podem, em muitos casos, melhorar tanto essas doenças crônicas que o paciente necessita de cada vez menos medicamentos no seu dia a dia. Mas é possível convencê-lo disso?
O paciente não percebe, ou talvez finja não perceber, que tudo isso poderia ser resolvido, ou mesmo evitado, se ele se cuidasse, se tratasse melhor. É, em primeiro lugar, a forma como ele vê sua saúde e o valor que ele dá à sua vida que precisam passar por grandes mudanças.
Assim é a Saúde no Brasil. Está doente há muito tempo. Suas doenças são crônicas e agudas. São doenças da falta e do excesso. São doenças da riqueza e da pobreza. A visão que o governo e a maioria das pessoas têm sobre a Saúde no Brasil é míope. É essencialmente equivocada porque o sistema é muito mais baseado no tratamento da doença do que na promoção ou preservação da saúde.
Me parece que o programa “Mais Médicos” foi criado para tratar o pé, e apenas o pé, de um paciente há muito debilitado por diversas doenças crônicas e agudas.
Será que vai conseguir?